Vencedores e perdedores no ataque turco contra os curdos na síria – Parte III

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Por Elijah J. Magnier: @ejmalrai

Tradução: btpsilveira

https://ejmagnier.com/2019/10/17/winners-and-losers-in-the-turkish-attack-on-the-kurds-in-syria-part-3-of-3/

Na Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos emergiram como os vencedores e se tornaram mais fortes que qualquer outro país do mundo. Os aliados – principalmente a União Soviética – venceram a guerra mas saíram dela muito fracos. Precisavam reconstruir seus países e suas economias, com os EUA exigindo enorme pagamento retrospectivo pelo seu apoio. Os Estados Unidos se tornaram uma superpotência com capacidade de guerra nuclear e poder de impor seu domínio. Países industriais foram reconstruídos no que a Alemanha chamou de Wirtschaftswunder e a França de les Trentes Glorieuses, os trinta anos de prosperidade posteriores ao final da guerra. Enquanto isso, os Estados Unidos impulsionaram sua prosperidade para espalhar sua hegemonia mundo afora. O poder dos EUA foi reforçado com o início da Perestroika e depois da queda da União Soviética. No novo milênio, o establishment dos Estados Unidos declarou a “Guerra ao Terrorismo” como justificativa para ocupar o Afeganistão e o Iraque, enquanto ao mesmo tempo tentava subjugar o Hezbollah no Líbano, mudar o regime na Líbia e tentar a destruição da Síria, tudo com o objetivo de reestruturar e formar um “Novo Oriente Médio”.

No Levante, a falha dos Estados Unidos na tentativa de alcançar seus objetivos foi dramática, mas teve sucesso em acordar a Rússia de sua longa hibernação, para desafiar a hegemonia unilateral dos EUA no mundo e desenvolver novas formas de alianças. O Irã também desafiou gradativamente a hegemonia dos Estados Unidos desde a “Revolução Islâmica” de 1979. O país planejou paciente e meticulosamente a construção de uma cadeia de aliados, conectando várias partes do Oriente Médio. Agora 37 anos depois, o Irã pode se gabar de um cordão de aliados fortes na Palestina, no Líbano, na Síria, no Iraque, no Iêmen e Afeganistão – que estão prontos, se necessário, para pegar em armas e defender o Irã. Na realidade, o país se beneficiou muito dos erros dos Estados Unidos. Pela sua falta de compreensão de líderes e populações pelo mundo, Os EUA falharam universalmente em ganhar “coração e mentes” em cada um e todos os países do Oriente Médio onde tentaram se impor como aliado potencial.

A entronização de Trump nos Estados Unidos ajudou os aliados e também os inimigos dos EUA a descobrir, juntos, os limites e o alcance das sanções que os Estados Unidos gostam de impor. A liderança foi de pronto assumida por Rússia e China, ao oferecer um modelo novo e mais suave de aliança, a qual aparentemente não tem o objetivo de impor outro tipo de hegemonia. A oferta de aliança econômica e parceria é especialmente atrativa para aqueles que já tiveram a infelicidade de testar o modelo hegemônico (norte)americano e querem se libertar através de uma alternativa mais equilibrada.

No governo Trump, o Oriente Médio tornou-se um enorme armazém cheio de armas de várias fontes. Cada país em particular (e alguns atores não estatais) está armado com drones – e alguns têm até mísseis de cruzeiros e de precisão. Ocorre que superioridade de armamentos não conta muito, e o equilíbrio de armamento não é suficiente para medir o peso militar de um lado ou de outro. Até o país mais pobre do Oriente Médio, o Iêmen, pode causar dano significativo ao mais rico, a Arábia Saudita, um país pesadamente armado com o mais moderno equipamento militar dos Estados Unidos no Oriente Médio.

Com certeza o presidente dos EUA foi informado do fracasso evidente da tentativa de derrubar o regime na Síria e também da impossibilidade de desalojar o Irã do Levante. Provavelmente, ele quer evitar perda desnecessária de vidas, daí sua decisão de abandonar o país que suas forças ocuparam nos últimos anos. Mesmo assim, sua súbita retirada, mesmo que parcial (porque ele afirma que uma pequena unidade permanecerá nas imediações de Al-Tanf, mesmo que sem benefício estratégico, dado que o posto de fronteira em al-Qaem está novamente operacional) – veio como um choque para seus aliados israelenses e curdos. Trump mostrou sua capacidade de abandonar mesmo amigos/inimigos mais próximos do dia para a noite.

Damasco usufruiu de uma vitória inesperada com o movimento de Trump. Agora, o governo sírio está recuperando aos poucos sua fonte mais importante de comida, agricultura e energia. O nordeste da Síria representa um quarto da geografia do país. As províncias nortistas são excepcionalmente ricas em água, represas hidroelétricas, petróleo, gás e alimentos. Tudo isso foi devolvido pelo presidente Trump a Assad. Aliás, isso também beneficia Trump em sua campanha para a reeleição.

Assad tem confiança na capacidade da Rússia de parar o avanço turco e reduzir suas consequências, talvez colocando os curdos a uma distância de 30 km das fronteiras turcas para aplacar a ansiedade do presidente Erdogan. Isso pode também ser encaixado no acordo de Adana, de 1998, entre Turquia e Síria (5 km em vez de 30 km para a fixação de uma zona de segurança), o que providenciaria tranquilidade a todas as partes envolvidas. A Turquia quer estar segura de que o YPG curdo, sucursal do PKK turco, será desarmado e contido. Nada tão difícil para a Rússia fazer, particularmente tendo em mente que o objetivo mais difícil, a retirada das tropas dos Estados Unidos, foi oferecido graciosamente.

O presidente Assad terá prazer em cortar a cauda dos curdos. Os turcos ofereceram Afrin para os turcos a fim de impedir que as forças governamentais sírias a controlassem. Os curdos, em troca do Estado de seus sonhos (Rojava), apoiou a ocupação dos Estados Unidos e apoiou também o principal inimigo sírio, Israel. O primeiro ministro Benyamin Netanyahu bombardeou centenas de alvos na Síria, preferindo que o país fosse dominado pelo Estado Islâmico (ISIS) e pressionando Trump a oferecer de bandeja para Israel as Colinas do Golã como presente – mesmo que os Estados Unidos não tenham autoridade sobre o território sírio.

Morreram centenas de milhares de sírios, milhões de refugiados foram expulsos de suas casas e centenas de bilhões de dólares foram gastos para destruir a Síria. Mesmo assim, o presidente Assad e a Síria prevaleceram. Sejam quais forem os resultados da guerra, países árabes e do Golfo Pérsico querem retornar ao país e participar de sua reconstrução. Seja quem for que governar a Síria, a tentativa de destruir o Estado e mudar o atual regime, falhou completamente.

Entre os atores no palco, em seus múltiplos fronts, a Rússia é o mais bem sucedido. Hoje está em uma posição que o presidente Putin sequer sonharia antes de 2015. Numerosos analistas e Think Tanks previram que Moscou afundaria no pântano sírio, e zombaram de seu arsenal. Todos estavam errados. A Rússia aprendeu bem a lição recebida na invasão do Afeganistão em 1979. Ofereceu cobertura aérea e de mísseis e cooperou brilhantemente com o Irã e seus aliados como  forças que atuariam no terreno.

O presidente russo trabalhou com brilhantismo na guerra da Síria, encontrando uma posição de equilíbrio e forjando bons laços com a Turquia, um aliado da OTAN – mesmo depois da derrubada pelos turcos de um avião russo em 2015. A Rússia tentou colaborar com os Estados Unidos, mas teve pela frente a oposição de uma fobia “soviética/vermelha” da administração (norte)americana. Moscou teve que trabalhar sem Washington para resolver a guerra na Síria e derrotar os jihadistas que afluíram do mundo inteiro para o interior do país com o apoio do ocidente (via Turquia e Jordânia). A Rússia exibiu seu novo arsenal e conseguiu vender grandes lotes de armas. Treinou sua força aérea em combate real, lutou lado a lado com os exércitos da Síria, do Irã e de um agente não estatal (Hezbollah). Bateu o ISIS e a al-Qaeda 40 anos depois de sua derrota no Afeganistão. Putin colocou-se como um parceiro e aliado confiável, ao contrário de Trump – que abandonou os curdos e chantageia até seu aliado mais próximo (Arábia Saudita).

A Rússia conseguiu impor o processo de paz de Astana em substituição ao de Genebra, ofereceu comércio em moedas locais em vez do dólar aos países e está abordando com pragmatismo as relações entre Irã e Arábia Saudita e entre Assad e Erdogan. Os (norte)americanos, por sua temeridade negligente, se mostraram incapazes de diplomacia.

Moscou fez a mediação entre os sírios curdos e o governo central em Damasco mesmo quando aqueles eram controlados pelos Estados Unidos por anos. Putin se comportou de maneira inteligente com Israel mesmo quando acusou Tel Aviv de provocar a morte de seus oficiais, e manteve-se em relativamente neutro no conflito entre Irã e Israel.

Por outro lado, Tel Aviv jamais pensou que a Síria poderia ser reunificada. Hoje Damasco tem drones armados, mísseis de cruzeiro e de precisão, mísseis supersônicos russos anti navios – e sobreviveu depois de todos esses anos de Guerra e destruição de sua infraestrutura.

Israel não tem mais a perspectiva de um aliado no Estado Curdo (Rojava). Seu sonho foi adiado por décadas e com ele a divisão de Síria e Iraque. O “Acordo do Século” agora não faz qualquer senso e o acordo de não agressão com países árabes virou miragem. Tudo o que o principal conselheiro de Trump, o primeiro ministro Netanyahu, queria, perdeu sentido, e agora, Israel tem que lidar com a presença russa no Oriente Médio e arrostar as consequências da vitória conquistada por Assad, russos e iranianos.

Depois dos curdos, Israel é o segundo maior perdedor – mesmo que não tenha sofrido danos econômicos e que nenhuma vida israelense tenha sido perdida em combate. No cenário das eleições israelenses, as ambições de Netanyahu agora são imprestáveis. Israel agora tem que se preparar para viver lado a lado com Assad, que com certeza quererá as Colinas do Golã de volta – uma prioridade para Damasco uma vez que comece a enfrentar a tarefa de reconstrução do país. Ele vem preparando a resistência local há anos, para o dia em que a Síria finalmente recuperará todo o seu território.

Postado por btpsilveira às 10:14

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Marcadores: Assad, btpsilveira, Curdos, Elijah J Magnier, Erdogan, EUA, Hezbollah, Irã, Putin, Rússia, Síria, Trump, turcos, Turquia

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